Em sessão realizada no dia 30 de março de 2021, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, concedeu a ordem no Mandado de Segurança (MS) 5.435/DF, impetrado pela construtora Andrade Gutierrez, confirmando a medida liminar anteriormente deferida, para suspender a aplicação da sanção de inidoneidade imposta pelo Tribunal de Contas da União (TCU) à construtora com base no artigo 46 da Lei 8.443/19992 (Lei Orgânica do TCU). Segundo a 2ª Turma do STF, não pode o TCU declarar a inidoneidade de pessoas jurídicas que firmaram acordos de leniência com as demais autoridades brasileiras que compõem o microssistema anticorrupção, sob pena de esvaziamento do instituto do acordo de leniência. Caso a sanção de inidoneidade aplicada pelo TCU fosse mantida, a construtora Andrade Gutierrez poderia ficar impedida, por até cinco anos, de participar de licitações no âmbito da Administração Pública Federal.
O ministro relator Gilmar Mendes proferiu o voto vencedor. Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes ressaltou que o TCU, ao proferir o Acórdão 483/2017-TCU-Plenário, constatou a ocorrência de fraude no âmbito da licitação para obras da Usina Termonuclear de Angra III, que teria se configurado por meio de conluio entre diversas construtoras, dentre elas a Andrade Gutierrez. Em relação à Andrade Gutierrez, considerando que a construtora já havia, à época, celebrado acordos de leniência com o CADE e o MPF, o TCU optou por suspender a aplicação da sanção de inidoneidade, a fim de recompensar a postura colaborativa da construtora. No entanto, o TCU condicionou a manutenção da suspensão da sanção de inidoneidade em favor da Andrade Gutierrez à apresentação, pelo MPF, de compromisso da construtora em colaborar com os processos de controle externo do TCU. De acordo com o Ministro Gilmar Mendes, ao proferir o Acórdão 483/2017-TCU-Plenário, o TCU reconheceu a validade do acordo de leniência firmado entre a Andrade Gutierrez e o MPF, mas entendeu que o acordo não afasta a competência do TCU para julgar contas e buscar o ressarcimento integral dos danos causados ao erário.
Em seu voto, o ministro relator reafirmou a competência do TCU para fiscalizar a aplicação do dinheiro público e buscar a reparação integral dos danos causados ao erário. Entretanto, o ministro relator ressaltou a necessidade de coordenação entre as instituições que compõem o microssistema anticorrupção no Brasil. Segundo o relator, o alinhamento de incentivos institucionais à colaboração e manutenção do princípio da segurança jurídica são essenciais para que as pessoas jurídicas tenham previsibilidade quanto às sanções e benefícios premiais cabíveis quando da adoção de postura colaborativa com o Poder Público.
Nesse sentido, o ministro relator destacou que o acordo de leniência firmado pela construtora Andrade Gutierrez com a CGU e AGU continha disposição expressa para afastar as sanções administrativas da Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), as sanções previstas nos incisos I a IV do artigo 87 da Lei 8.666/1993 (antiga Lei de Licitações e Contratos) e as penalidades previstas na Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), dentre elas a declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública. Assim, segundo o relator, a aplicação da sanção de inidoneidade esvaziaria o acordo de leniência da Andrade Gutierrez e a própria força normativa do artigo 17 da Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção).
Ademais, o ministro relator ressaltou a sobreposição fática entre os ilícitos admitidos pela construtora perante a CGU e AGU e o objeto de apuração do TCU. Nesse contexto, o relator analisou o risco de determinada empresa ser apenada duas ou mais vezes pelo mesmo fato nas diferentes esferas de responsabilização em razão da ausência de coordenação entre as autoridades brasileiras, de maneira a configurar o fenômeno conhecido como bis in idem, o que poderia minar os incentivos para a celebração de acordos de leniência e a colaboração probatória das pessoas jurídicas, prejudicando, assim, a própria efetividade do microssistema anticorrupção ante o cenário de insegurança jurídica.
Por essas razões, o ministro relator entendeu que a possibilidade de o TCU aplicar sanção de inidoneidade em face da construtora Andrade Gutierrez pelos mesmos fatos que deram ensejo à celebração de acordo de leniência com autoridades brasileiras não seria compatível com os princípios constitucionais da eficiência e segurança jurídica, ao passo que esvaziaria a efetividade do instituto do acordo de leniência.
Não obstante, destacou que, mesmo após o STF deferir parcialmente a liminar para impedir o TCU de aplicar a sanção de inidoneidade em face da Andrade Gutierrez, o TCU decretou a indisponibilidade dos bens da construtora, determinando que esta medida alcançasse os bens considerados necessários para garantir o integral ressarcimento dos danos apurados. Segundo o ministro relator, o TCU possui a prerrogativa de decretar a indisponibilidade dos bens da construtora para buscar a reparação integral do dano ao erário, com base no Art. 44, §2° da Lei 8.443/1992 (Lei Orgânica do TCU), uma vez que a celebração de acordos de leniência não impede que o TCU busque a reparação de danos ao erário complementares que não foram contemplados nos acordos. Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes destacou que a celebração de acordos de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado, na forma do art. 16, §3°, da Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). Entretanto, para o ministro relator, a aplicação da sanção de inidoneidade pelo TCU resultaria na obstrução da execução do acordo de leniência da Andrade Gutierrez, que continha disposição expressa para afastar a decretação de inidoneidade para contratar com a Administração Pública.
A recente decisão do STF representa um importante marco para o fortalecimento do instituto do acordo de leniência no direito brasileiro. O entendimento adotado pelo STF confere maior segurança jurídica às empresas lenientes diante de eventual falta de coordenação entre as diversas autoridades que compõem o microssistema anticorrupção, gerando incentivos para que pessoas jurídicas celebrem acordos de leniência no futuro e, assim, colaborem no combate de infrações econômicas e práticas corruptivas.
O voto do Ministro Gilmar Mendes também destacou a notória ampliação do uso dos acordos de leniência no ordenamento jurídico pátrio, em consonância com os esforços globais de luta contra a corrupção e em respeito aos tratados multilaterais em matéria anticorrupção incorporados pelo Brasil, bem como a importância dos acordos de leniência como instrumentos probatórios voltados ao fortalecimento de uma política de combate às infrações econômicas. No entanto, o ministro relator expôs as dificuldades criadas pela coexistência de múltiplos regimes de leniência no direito brasileiro, notadamente no que concerne às assimetrias entre os diferentes regimes de leniência e às dificuldades de cooperação e coordenação entre as múltiplas autoridades que compõem o microssistema anticorrupção. Segundo o relator, há pelo menos 4 (quatro) gêneros de acordos de leniência que podem ser celebrados por pessoas jurídicas para a atenuação da responsabilidade administrativa ou judicial de atos econômicos: (i) o Acordo de Leniência Antitruste, previsto na Lei 12.529/2011 (Lei do CADE); (ii) o Acordo Leniência Anticorrupção, previsto na Lei 12.843/2013 (Lei Anticorrupção); (iii) o Acordo de Leniência do Ministério Público, que surge de interpretação sistemática das funções constitucionais do Ministério Público; e (iv) o Acordo de Leniência do Sistema Financeiro Nacional, previsto na Lei 13.506/2017. O Ministro Gilmar Mendes também destaca que é possível apontar uma quinta modalidade de acordo de leniência, o chamado “acordo de não persecução cível”, recentemente introduzido pela Lei 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”).
Ao analisar os diferentes regimes de leniência no Brasil, o Ministro Gilmar Mendes destacou assimetrias relevantes, sobretudo no que concerne à ausência de parâmetros comuns para o cálculo da reparação dos danos ao erário e aos benefícios alcançáveis na esfera penal, e destacou a necessidade esforços legislativos e administrativos para uniformizar os regimes de leniência e os incentivos premiais existentes, bem como para criar mecanismos de cooperação e coordenação entre as instituições que compõem o microssistema anticorrupção, a fim de garantir segurança jurídica para as empresas que celebrem acordos de leniência e, em última instância, assegurar a própria efetividade dos acordos de leniência, com o oferecimento de uma estrutura sólida de incentivos à celebração de acordos. Também ressaltou o entendimento de parcela da doutrina que defende a necessidade de criação de um “balcão único” para a negociação e celebração de acordos de leniência entre as instituições brasileiras que compõem o microssistema anticorrupção.
Ressalta-se que o Acordo de Cooperação Técnica para negociação e celebração de acordos de leniência firmado em setembro de 2020 entre a CGU, AGU, TCU e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob a supervisão do STF, representa importantes avanços no regime de coordenação e cooperação entre as instituições signatárias. O Acordo de Cooperação Técnica dispõe sobre as atribuições de cada instituição signatária no âmbito do microssistema anticorrupção, prevendo diversas ações operacionais para fomentar a atuação das instituições signatárias de maneira cooperativa, colaborativa e sistêmica, inclusive no que concerne aos procedimentos para negociação e celebração de acordos de leniência, compartilhamento e utilização de elementos de prova pelas instituições signatárias, busca de consenso entre as instituição signatárias quanto à apuração e quitação de danos causados ao erário e estabelecimento de mecanismos de compensação e/ou abatimento de multas pagas por empresas lenientes a fim de afastar a dupla responsabilização, evitando-se cobranças em duplicidade pelos mesmos atos ilícitos sancionados nas diversas esferas de responsabilização.
Em linha com os esforços já adotados e com a recente explanação do voto do Ministro Gilmar Mendes, o Plano Anticorrupção elaborado pelo Governo Federal também prevê diversas ações para aperfeiçoar o regime de coordenação e cooperação entre as autoridades brasileiras no que concerne à negociação e celebração de acordos de leniência, bem como para uniformizar os regimes de leniência. Em particular, o Plano Anticorrupção prevê que, até 30 de junho de 2021, a AGU e CGU atualização as portarias que regem os procedimentos de negociação de acordos de leniência (Portaria AGU nº 411/2019 e Portaria Conjunta AGU/CGU nº 4/2019), a fim de implementar as diretrizes estabelecidas no Acordo de Cooperação Técnica analisado acima (item 7.1 do Plano Anticorrupção). Ademais, o Plano Anticorrupção prevê que a CGU irá propor, até 30 de junho de 2021, a alteração do Decreto nº 8.420/2015 (Decreto que regulamenta a Lei Anticorrupção) para aprimorar e esclarecer o regime de cooperação com outros órgãos em matéria anticorrupção (item 1.10.5 do Plano Anticorrupção).