Após quase três meses após a promulgação e publicação da Lei 14.112 em 24 de dezembro de 2020, que alterou a Lei de Recuperação e Falências (“LRF” – Lei 11.101/2005), houve, no último dia 26 de março de 2021, a derrubada de diversos vetos presidenciais, entre eles aquele referente ao parágrafo único do artigo 60 da LRF. Com o ressurgimento do referido dispositivo legal, passou-se a permitir expressamente que ativos de sociedades em recuperação judicial reunidos nas chamadas Unidas Produtivas Isoladas (“UPIs”) sejam adquiridos livres e desembaraçados de quaisquer ônus, não havendo sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não limitadas, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista.

Tratando-se de conceito jurídico indeterminado, as UPIs representam uma multiplicidade de ativos que englobam desde ativos físicos (como bens imóveis, equipamentos, etc.) até ativos imateriais (como marcas, patentes, etc.), os quais são destacados do patrimônio da sociedade em recuperação e reunidos para alienação a outras empresas.

Quanto aos seus efeitos no tempo, a nova regra somente se aplica para alienações de UPIs ocorridas a partir de 26 de março de 2021, data de entrada em vigor das partes vetadas da Lei 14.112/2020, cujo veto foi derrubado. Quanto aos efeitos práticos, a nova regra traz maior segurança jurídica na medida em que dispõe expressamente sobre a ausência de sucessão do adquirente de ativos em diversas matérias constantes de um rol exemplificativo, ampliando assim o rol de passivos que não serão sucedidos pelo adquirente de ativos. A redação anterior da LRF, ao contrário, trazia incertezas pois previa tão somente que o objeto da alienação estaria livre de qualquer ônus e que o adquirente não sucederia as obrigações do devedor, “inclusive as de natureza tributária”.

Tal lacuna da lei anterior foi sendo preenchida ao longo do tempo por doutrina e jurisprudência dos Tribunais Superiores até culminar com a alteração legislativa levada a cabo agora.  Nesse sentido, especificamente no tocante a ausência de sucessão anticorrupção, o Enunciado n. 114 aprovado pelo Conselho da Justiça Federal em junho de 2019, no âmbito da III Jornada de Direito Comercial, mas sem força de lei, já previa que as penalidades pecuniárias aplicadas ao devedor com base na Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013 (“Lei Anticorrupção”), não serão transmitidas aos adquirentes de ativos em processos de recuperação judicial ou falência, quando a alienação ocorrer por meio de UPIs.

No que se refere ao regime de responsabilidade por sucessão de obrigações decorrentes de violações à Lei Anticorrupção, o artigo 4º da Lei nº 12.846/2013 estabelece, em seu parágrafo primeiro, a responsabilidade da sucessora pelo pagamento de multas e reparação integral do dano causado nas hipóteses de fusão e incorporação, limitado ao patrimônio transferido, desde que decorrentes de atos anteriores a tais operações societárias. Não há na Lei Anticorrupção referência específica à responsabilidade sucessória nos casos de aquisição de ativos, daí a importância da nova redação do art. 60, parágrafo único da LRF que deixa clara a ausência de tal responsabilidade em relação ao adquirente de UPIs por obrigações oriundas de eventuais atos ilícitos praticados em violação à Lei Anticorrupção, seja pela pessoa jurídica em processo de recuperação ou com envolvimento do próprio ativo adquirido.

Da mesma forma, o grupo econômico ao qual pertence o adquirente de UPIs também não é atingido pela responsabilidade solidária inscrita no artigo 4º, parágrafo 2º da Lei 12.846/2013, não havendo que se falar em solidariedade nas multas e reparação integral de danos entre o arrematante de ativos no âmbito de processo de recuperação judicial e suas controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas, no âmbito do respectivo contrato.

Na prática, restam assim eximidos de responsabilidade o adquirente de ativos e as empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico por eventuais obrigações de ressarcimento de danos ao patrimônio público, sanções e multas impostas com base na Lei 12.846/2013, seja no âmbito judicial ou no âmbito administrativo, através de Processos Administrativos de Responsabilidade ou acordos de leniência. Como aponta o parecer do Senado emitido por ocasião da votação do então projeto de lei 4.458 de 2020, a recente mudança da Lei de Recuperação e Falências “amplia a blindagem do adquirente ainda mais, considerando que não assumirá dívida alguma, mesmo se normas anticorrupção assim exigirem”.

Entretanto, não deve se enxergar nessa ampliação da blindagem legal trazida pela Lei 11.101/2005 um enfraquecimento à Lei Anticorrupção ou um permissivo para a prática de atos de corrupção, na medida em que tal proteção apenas recai sobre a figura do adquirente de ativos no âmbito do processo de recuperação, não se estendendo às próprias empresas em recuperação judicial. Estas continuam podendo ser responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira praticados. Ademais, conforme disposto no caput do art. 4º da Lei 12.846/2013, esta responsabilidade subsiste ainda que a empresa em recuperação seja objeto de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.

Outro efeito prático da nova redação do artigo 60, parágrafo único da Lei 11.101 diz respeito é a maior celeridade dos mecanismos de diligência apropriada (due diligence) de integridade no âmbito de aquisições de ativos realizadas em processos de recuperação judicial. O Decreto 8.420, em seu artigo 42, inciso XIV, aponta como um dos parâmetros de avaliação dos programas de integridade a verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas. Verificada aplicação no caso concreto, considerando o afastamento da sucessão do arrematante de UPIs nas obrigações de natureza anticorrupção, é possível agir com maior celeridade na decisão que envolve a compra de ativos em recuperação judicial.

A alienação de ativos através de UPIs passou assim a se apresentar como um dos mecanismos mais atrativos e eficazes para a recuperação judicial da empresa em dificuldade, permitindo que devedores cumpram suas obrigações, recebendo um justo preço por seus ativos, que não sofrerão depreciação por eventuais encargos transmitidos ao adquirente, que credores sejam satisfeitos em suas demandas e que adquirentes de ativos possam ter a garantia da ausência de responsabilidade sucessória, passando os investidores a dispor de maior segurança jurídica na aquisição de ativos eventualmente envolvidos em atos de corrupção.

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